Psicologia e misticismo não se misturam
O aumento no número de denúncias de profissionais, que incluem práticas místicas em suas sessões, preocupa por deturpar a imagem da profissão.
A prática da ética na psicologia é essencial para a profissão.
Matéria publicada no Jornal PSI ed 140. Disponível neste link [copiada na íntegra]
https://www.crpsp.org.br/portal/comunicacao/jornal_crp/140/frames/fr_questoes_eticas.aspx. Acesso em 07-10-2021
O item "e" do Artigo 2º do Código de Ética, que dispõe sobre Responsabilidades Gerais do psicólogo, prevê que a ele é vedado "induzir a convicções políticas, filosóficas, morais ou religiosas, quando do exercício de suas funções profissionais".
Já o item "c" do Artigo 1º determina
que o profissional preste "serviços psicológicos em condições de trabalho
eficientes, de acordo com os princípios e técnicas reconhecidos pela ciência,
pela prática e pela ética profissional".
Ou seja, a Psicologia não pode se misturar a práticas que envolvam fé ou
misticismo, uma vez que ela se propõe, através da atuação de seus
profissionais, uma relação diferente da proposta por esses campos.
São
práticas próprias do homem desde a Antiguidade, em que o conhecimento sobre o
sujeito era de domínio religioso e os problemas patológicos (que nem levavam
essa denominação, mas eram considerados de possessão ou sobrenaturais) das
pessoas eram levados a curandeiros, xamãs, bruxos, astrólogos ou sacerdotes de
diferentes crenças.
A onda mística, que assola o País já há alguns anos, bateu às portas da Psicologia, gerando conflitos no exercício profissional. Para se ter uma dimensão do problema, cerca de 25% dos processos no Conselho Regional de Psicologia de São Paulo são relativos a denúncias contra psicólogos que inserem práticas místicas ou não reconhecidas pela profissão em suas sessões psicoterápicas, comprometendo o trabalho psicológico e a imagem da profissão no Brasil.
A onda mística, que assola o País já há alguns anos, bateu às portas da Psicologia, gerando conflitos no exercício profissional. Para se ter uma dimensão do problema, cerca de 25% dos processos no Conselho Regional de Psicologia de São Paulo são relativos a denúncias contra psicólogos que inserem práticas místicas ou não reconhecidas pela profissão em suas sessões psicoterápicas, comprometendo o trabalho psicológico e a imagem da profissão no Brasil.
"Os usuários, muitas vezes um público leigo, não
denunciam, porque aceitam aquilo que o profissional oferece na sessão como
Psicologia.
Por conta disso, acabamos identificando o problema, muito mais
claramente, na publicidade feita por esses profissionais, que se promovem como
psicólogos ligados a alguma prática mística, do que na denúncia de usuários",
revela a coordenadora da Comissão de Ética do CRP-SP, Elisa Zaneratto Rosa.
Ela afirma que surgem muitos e variados casos que ferem o artigo 2º, como aqueles que oferecem e desenvolvem terapia de vidas passadas ou que realizam com o cliente algum tipo de ritual místico ou religioso, como acender uma vela para um santo ou dar um "passe" espiritual no paciente.
"Se o psicólogo oferece algum tipo de prática mística, ou não reconhecida, ele não pode misturá-la à prestação de serviço psicológico.
Ela afirma que surgem muitos e variados casos que ferem o artigo 2º, como aqueles que oferecem e desenvolvem terapia de vidas passadas ou que realizam com o cliente algum tipo de ritual místico ou religioso, como acender uma vela para um santo ou dar um "passe" espiritual no paciente.
"Se o psicólogo oferece algum tipo de prática mística, ou não reconhecida, ele não pode misturá-la à prestação de serviço psicológico.
Se ele é, ao mesmo tempo, astrólogo e psicólogo, deve separar constantemente
as duas atividades, seja no cartão de visitas ou em outras formas de
divulgação, nos locais em que trabalha, nas atividades que realiza, quando
procurado para cada tarefa.
Vincular as duas coisas e oferecer àquele que procura a Psicologia uma prática
que não pode ser reconhecida enquanto tal é deturpar a profissão", adverte
Elisa.
A professora de Ética Profissional na PUCSP, Bronia Liebesny, acrescenta que parte do problema é de responsabilidade da categoria. "A própria classe falou por muitos anos o 'psicologuês'.
A professora de Ética Profissional na PUCSP, Bronia Liebesny, acrescenta que parte do problema é de responsabilidade da categoria. "A própria classe falou por muitos anos o 'psicologuês'.
E não deixou claro para a população sua atividade, atuação e limites",
observa.
Ela lembra que, de acordo com várias pesquisas sobre a imagem do
profissional, o imaginário popular associou, no decorrer da história, o
trabalho do psicólogo a outras inúmeras atividades que se prestavam
aparentemente aos mesmos objetivos.
Alguns autores usaram e pensaram produções culturais que serviram de base
para suas teorias. "Por desinformação, essas produções culturais fizeram com
que estudantes/profissionais e as pessoas, em geral, passassem a
considerará-las a própria Psicologia", afirma Liebesny.
Quando as práticas alternativas, incorporadas à psicoterapia, envolvem a fé em uma religião, a situação se torna mais complicada.
Quando as práticas alternativas, incorporadas à psicoterapia, envolvem a fé em uma religião, a situação se torna mais complicada.
Bronia cita, como exemplo, a chamada "terapia de vidas passadas", que propõe
ao paciente a crença na reencarnação, e é considerada inaceitável pela
Psicologia, porque, ao procurar a origem do problema em "outra vida do
paciente", ao invés da concepção deste como ser ativo, prega um tipo de
passividade, de desresponsabilização do indivíduo.
"A pressuposição de que há vidas passadas pode ser válida para muitas
pessoas, mas não pode fazer parte da Psicologia, porque há o preceito da
fé", explica.
Para Bronia, além da questão de fé, esses tipos de prática fogem ao objetivo da Psicologia, que é o de permitir ao indivíduo controlar e se apropriar de seu processo de desenvolvimento das relações.
Para Bronia, além da questão de fé, esses tipos de prática fogem ao objetivo da Psicologia, que é o de permitir ao indivíduo controlar e se apropriar de seu processo de desenvolvimento das relações.
"Para a Psicologia, o indivíduo é um sujeito ativo na solução dos problemas,
nas relações.
Ele é partícipe na construção de sua saúde no processo de
desenvolvimento psicológico, não importando qual é a linha teórica do
profissional", enfatiza.
"Se o paciente é ativo em seu processo, a questão não pode ser colocada num plano do qual ele não possa dar conta.
"Se o paciente é ativo em seu processo, a questão não pode ser colocada num plano do qual ele não possa dar conta.
O indivíduo tem de lidar com suas próprias questões", argumenta. Ela observa
que, se essas atividades não respondem aos objetivos da Psicologia,
obviamente não fazem parte da atividade.
A professora comenta que várias pesquisas sobre a imagem do psicólogo
perante o leigo apontam para a visão de um indivíduo que tem quase
super-poderes, com capacidade de ler a mente e ver o interior do
paciente.
"Isso advém de sua sensibilidade de ouvir o sujeito e ajudá-lo a resolver
seus problemas - que é já algo discutível enquanto conceituação porque não
são todas as teorias que concordam com essa leitura. Isso supõe um poder da
técnica, que também é discutível", afirma.
Ela diz que faz parte do senso comum pensar que o psicólogo tem esse poder. No decorrer da história social, o psicólogo era visto como um sucessor ou quase um adjunto do médico que tinha condições para resolver problemas físicos e metafísicos.
Ela diz que faz parte do senso comum pensar que o psicólogo tem esse poder. No decorrer da história social, o psicólogo era visto como um sucessor ou quase um adjunto do médico que tinha condições para resolver problemas físicos e metafísicos.
"As pesquisas mostram que, para o usuário,
o psicólogo se aproxima do médico e às vezes do padre, pois é sensível,
confidente, e não revela os segredos", afirma.
Se essa imagem se fortaleceu e a categoria não se empenhou em desfazê-la, é natural que a natureza da demanda pelos atendimentos psicológicos inclua soluções de ordem mística.
Se essa imagem se fortaleceu e a categoria não se empenhou em desfazê-la, é natural que a natureza da demanda pelos atendimentos psicológicos inclua soluções de ordem mística.
"Se formos levar em conta a Psicologia, tal como ela se propõe, ela nem é
resolutiva e muito menos imediatista.
Seja qual for a técnica utilizada, ela
tem por objetivo lidar com as condições que levam o indivíduo a apresentar
aquele determinado comportamento, o modo como as relações estão ocorrendo e
também as condições que levam a isso", diz a professora da PUC-SP, Bronia
Liebesny.
Para ela, cabe ao Psicólogo dizer ao usuário, que está fragilizado, quais são os limites da psicoterapia. "Se o profissional não faz essa explicação, ele estará alimentando
uma expectativa. E acontece que, premidos por satisfazerem essa expectativa, muitos psicólogos utilizam técnicas alternativas para auxiliar na satisfação da demanda. Muitos saberes - apesar de serem respeitosos -, não são da Psicologia.
Para ela, cabe ao Psicólogo dizer ao usuário, que está fragilizado, quais são os limites da psicoterapia. "Se o profissional não faz essa explicação, ele estará alimentando
uma expectativa. E acontece que, premidos por satisfazerem essa expectativa, muitos psicólogos utilizam técnicas alternativas para auxiliar na satisfação da demanda. Muitos saberes - apesar de serem respeitosos -, não são da Psicologia.
A Astrologia, por exemplo, é
um corpo de conhecimentos, que tem objetivos diferentes da Psicologia. Temos
de respeitar esses saberes, mas deixando claro que são saberes de outra
alçadas".
A professora acredita que o profissional, ao recorrer às práticas não reconhecidas, está dizendo ao leigo que a Psicologia não dá conta de resolver seus distúrbios mentais e seu sofrimento emocional
.
"Ou se abandona a Psicologia ou se produz algo adequado para torná-la eficaz no problema.
A professora acredita que o profissional, ao recorrer às práticas não reconhecidas, está dizendo ao leigo que a Psicologia não dá conta de resolver seus distúrbios mentais e seu sofrimento emocional
.
"Ou se abandona a Psicologia ou se produz algo adequado para torná-la eficaz no problema.
Temos que produzir conhecimento que questione a não utilidade daquilo que
existe.
Para isso, existem os fóruns acadêmicos e associações científicas.
E para o conhecimento que não é reconhecido pela Psicologia, mas que revela
algum fundamento, há sempre o caminho da pesquisa".
"Muitos psicólogos utilizam técnicas alternativas que acham que vai auxiliar
na satisfação dessa demanda.
Porém, muitos saberes - apesar de serem respeitosos - não são da
Psicologia"
Bronia Liebesny
Discussão antiga
Não é de hoje que a mescla de práticas místicas à Psicologia tem sido motivo de discussão.
Bronia Liebesny
Discussão antiga
Não é de hoje que a mescla de práticas místicas à Psicologia tem sido motivo de discussão.
Em novembro de 1988, durante o I Congresso de Psicologia do CRP-SP, o tema
foi levado à gestão "Palavra Aberta II", tendo como debatedores o bacharel
em Psicologia e professor do Instituto de Matemática e Estatística, José
Severo de Camargo Pereira; a astróloga e
psicóloga
clínica, Lídia Vainer; o parapsicólogo e médium Luís Antonio Gaspareto; e a
professora de Psicopatologia do Departamento de Psicologia Clínica da USP,
Tánia Tsu.
A discussão era sobre os limites entre a Psicologia e as práticas da Parapsicologia, Astrologia, tarô, quiromancia, e outras já em voga na época. Na ocasião, Severo fez uma breve análise de cada prática e concluiu:
A discussão era sobre os limites entre a Psicologia e as práticas da Parapsicologia, Astrologia, tarô, quiromancia, e outras já em voga na época. Na ocasião, Severo fez uma breve análise de cada prática e concluiu:
"Tarô, Astrologia, quiromancia, Parapsicologia e outras coisas que tais são
apenas produtos especulativos de um pensamento místico e desejoso.
Mas, como bom cientista, estou disposto a mudar minha opinião diante de
provas irrefutáveis.
Enquanto elas não vierem, continuarei sendo materialista e determinista
probabilista."